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A pegada de carbono dos edifícios do presente e do futuro

A pegada de carbono dos edifícios do presente e do futuro

As alterações climáticas são uma realidade. O controlo da subida da temperatura média até ao fim do século (não mais de 1,5 ºC) é já um imperativo da União Europeia que se traduzirá em normativas a adoptar por todos os países membros.

O sequestro de CO2 da atmosfera e o armazenamento de carbono

Resolver o problema das alterações climáticas é praticamente sinónimo de descarbonização da economia11, isto é reduzir drasticamente/acabar com o consumo dos combustíveis fósseis. Mas não é só. A questão é mais complicada. Mesmo que hoje acabássemos por completo com o consumo de combustíveis fósseis, em todo o mundo, não resolvíamos o problema, já que cada molécula de CO2 emitida tem um tempo de vida média na atmosfera de mais de 100 anos. Isto é, fica lá a causar o efeito de estufa durante todo esse tempo. Conclusão: tem de haver algum meio de retirar o CO2 da atmosfera! Fala-se em sequestro de carbono e este aparece proposto sob muitas formas. Entre todas, a que é mais realista e simples à escala global e verdadeiramente impactante, baseia-se na fotossíntese e na produção de madeira e outros materiais naturais para utilizações de longa duração (1 m3 de madeira armazena 1 tonelada de CO2). Por exemplo, no sector da construção.

Esta abordagem constitui uma proposição verdadeiramente útil, não só pela sua escala, mas porque se insere num sector económico de relevância predominante. E, ela própria, gera actividade económica, em forte contraste com outras soluções que só têm viabilidade com base em grandes investimentos cujo retorno económico é basicamente nulo.

A construção convencional

O sector dos edifícios[1], sozinho, é responsável por ~40% das emissões totais de CO2 no Mundo, das quais 11% na fase de construção dos edifícios e 29% durante a sua vida e funcionamento. Na União Europeia apenas, os valores são mais elevados: 40% da Energia Final é consumida no sector dos edifícios e, sozinha, é responsável por 36% das emissões totais.

Um aspecto importante é que os edifícios são responsáveis pela emissão de GEE (Gases de Efeito de Estufa) mesmo antes de serem utilizados, por via do CO2 resultante da energia consumida no processo produtivo e no que é libertado no próprio processo produtivo de alguns dos materiais de que são construídos. Apenas no fabrico de cimento – o material base para a produção de betão – são produzidos 8% das emissões totais no Mundo.

Neutralidade carbónica

O enquadramento na União Europeia para este tema pode ser apreciado na ‘European Climate Law’, que consagra na legislação europeia “… the target of economy-wide climate neutrality by 2050 at the latest, the aim of achieving and establishing a binding Union domestic reduction commitment of net greenhouse gas emissions (emissions after deduction of removals) of at least 55 % below 1990 levels by 2030.”

O sector da construção parece destinado a ter um papel muito importante nesta matéria. Em termos comparativos, e só do lado das emissões, basta pensar que se deixássemos em terra todos os aviões que hoje estão a voar, estaríamos a reduzir as emissões totais de GEE, na ordem dos 3%, enquanto abordar o sector dos edifícios, é “afinar o tiro” a um potencial superior a 40%. Para que se perceba bem, há 3 questões em jogo:

  • sequestro e armazenamento de carbono (pegada de CO2 negativa!)
  • zero emissões no funcionamento dos edifícios (NZEBs
  • Net ou Nearly Zero Energy Buildings)
  • edifícios “carbono neutros”, ou “carbono zero” num contexto da discussão da neutralidade carbónica.

Há uma certa ambiguidade ainda por esclarecer. Fala-se em “GWP – Global Warming Potential de todo o ciclo de vida do edifício”, incluindo construção. Ora isto, para carbono zero, só pode significar estar-se a fazer referência a edifícios novos, incorporando grandes percentagens de materiais naturais. Quanto aos edifícios convencionais e/ou existentes, o que se pode fazer é apenas reduzir, com suficiência e eficiência energéticas, as emissões associadas ao seu funcionamento e, depois, fornecer a energia necessária com fontes renováveis (sobretudo o fotovoltaico colocado no próprio edifício), para atingir um comportamento de NZEB. Passarão a ser edifícios zero emissões, mas não serão carbono neutros!

Novos edifícios e uma pegada de carbono negativa

Para procurar explicar as nuances desta questão, usaremos um exemplo concreto da abordagem do promotor Vanguard Properties: uma residência construída integralmente em madeira e outra, absolutamente idêntica, construída de forma convencional, betão e alvenaria.

Consideremos uma residência concreta, projectada para a Aldeia da Muda na Comporta (gabinete Architects Office, LX – AOLx). Estas residências têm um aspecto genérico como o da Figura 1. A
planta da moradia analisada pode ser vista na Figura 2, correspondendo a um T5 com uma área de implantação de 384 m2.

Moradia tipo, Aldeia da Muda, na Comporta
Figura 1. Moradia tipo, Aldeia da Muda, na Comporta.
Planta tipo T5, Aldeia da Muda na Comporta.
Figura 2. Planta tipo T5, Aldeia da Muda na Comporta.

A construção em madeira considerada baseia-se em componentes fabricadas pela Kozowood (Esposende) e compreende 2 placas em CLT de pinho (para soalho e cobertura) e um conjunto de paredes externas e internas em Woodframe. A casa assenta num conjunto de estacas helicoidais metálicas (49 unidades). Os níveis elevados de isolamento (fibra de madeira em painel e fibra de celulose injectada), o conjunto de pérgulas e protecções solares, conferem à casa um comportamento térmico excepcional, categoria A+. Os vidros são duplos e de baixa emissão (1,3 W/m2 e ºC), com factor solar entre 0,29 e 0,60.

São projectados 55 m2 de painéis solares fotovoltaicos, para produção de electricidade (climatização e AQS com bombas de calor e recuperação de calor + carregamento de veículo eléctrico) colocados na cobertura, transformando a moradia num edifício NZEB.

A construção convencional aqui considerada para efeitos de comparação baseia-se numa estrutura de betão armado, paredes externas de alvenaria dupla e internas de alvenaria simples. Para simplificar, postula-se que o comportamento térmico seja o mesmo, classe A+ (recorrendo a um reforço de isolamento térmico, mesma qualidade dos vidros e idêntico sombreamento).

O cálculo das emissões de CO2 em ambos os casos é complexo [por exemplo 2,3,5,6,7]. Importa, por exemplo, decidir, se se quer fazer uma análise de ciclo de vida (“craddle to grave”) ou simplesmente até à construção (“craddle to gate”, na obra). Importa também considerar a parte de electricidade nos processos de fabrico (o que varia de país para país)2. Nesta análise decidimos não incluir o ciclo de vida completo e fizemos correcções para a situação de produção de electricidade final em Portugal, quando possível. No caso da construção em obra procurámos incluir valores que nos situem os materiais em obra. Também não incluímos muitos aspectos de acabamentos, carpintaria de limpos, entre outros, admitindo que impactam por igual as duas construções (mas com valores relativamente baixos) em relação ao valor do balanço final.

Nesta nota não é relevante incluir o detalhe dos cálculos feitos, mas alguns valores ficam reflectidos nos valores incluídos na Tabelas 1, 2. Antes de apresentarmos os resultados importa referir que [9] 1 m3 de madeira sequestra 1 tonelada de CO2. No entanto a madeira tem que ser extraída da floresta, transportada, serrada e seca, antes de chegar às instalações da Kozowood para fabrico das componentes utilizadas. Uma análise da extensa documentação disponível e consultada, estabelece um valor entre 0,3ton de CO2/m3 e 0,1 ton CO2/m3 de madeira incorporada. No caso da Kozowood, com produção de electricidade própria (PV) em fábrica e recurso aos seus desperdícios de madeira para processos térmicos e climatização, poderemos situar-nos mais perto de 0,1to que 0,3 tonCO2/m3. Contudo, para fins da comparação com carácter genérico que se pretende fazer, assumiremos o valor mais elevado.

Construção em madeira:

 QuantidadeQuantidade armazenadaQuantidade (Produção)Ton CO2
Madeira265 m3-1 tonCO2/m3+0,3 tonCO2/m3-185
Aço1 ton——————-2.7ton CO2/ton+2.7
Vidro1,2 ton——————+ 0,8 ton /1 ton+1
PV55 m2——————0,55 ton CO2/m2+30
Balanço—————————————–——————–– 151
Tabela 1. Casa Muda – construção em madeira.
QuantidadeEmissõesTon CO2
Betão110,22 m3250 kgCO2/m3+27,6
Aço18,7 ton2,7 tonCO2/ton+50,5
Alvenaria264 m2(int.) + 188 m2 (ext.)0,29 tonCO2/ton+44,3
Vidro1,2 ton0,8 tonCO2/ton+1
PV55 m20,55 tonCO2/m2+30
Balanço————————–———————-+153,4
Tabela 2. Idem em construção convencional.

Os valores obtidos para as pegadas respectivas podem ser apresentados por m2 de área de construção: -0,4 tonCO2/m2 para a casa de madeira e + 0,4 tonCO2/m2 para a mesma casa em construção convencional.

Conclusão

Esta abordagem simplificada mostra que a pegada negativa de uma casa é idêntica em valor absoluto à pegada positiva da outra. Como dissemos, a pegada negativa da construção em madeira pode ser ainda mais negativa, mas também a pegada positiva da construção convencional pode ainda ser reduzida (ver [3,8], por exemplo) com betão menos emissor, aço reciclado, outro tipo de paredes, entre outros. O que nunca poderá ser é “carbono neutra”, longe disso! Embora possa ser NZEB!

Em 2021, o Governo francês estabeleceu que os novos edifícios públicos deverão incorporar 50% de madeira na sua construção. Os resultados obtidos justificam aquele valor. Um edifício assim fica “carbono
neutro”
! E com “zero emissões” se recorrer a um sistema fotovoltaico adequado. E isso é o mínimo que será exigido, em geral, para todos os edifícios, no futuro (antes de 2050).

É importante que o Governo comece a explicar como pretende, desde já, abordar esta matéria e inicie o desenvolvimento de uma metodologia que permita a análise da pegada carbónica dos edifícios, feita em moldes simples, não exaustivos, ao estilo da actual certificação energética.

Quanto à Vanguard Properties continuará a desenvolver a sua política de pegada de carbono negativa, nos seus novos edifícios, presentes e futuros: em geral, 100% de construção em madeira e o mais perto possível de 100% em madeira, na abordagem que fará à construção em altura (10 ou mais pisos). A Vanguard quer fazer este caminho inequívoco para a sustentabilidade, pelas razões já invocadas no início desta nota técnica, mas também porque a construção em madeira, estabelece à partida segurança e conforto nos edifícios que correspondem ao produto de alta qualidade que a Vanguard quer apresentar.

Referências

  • [1] Manuel Collares Pereira , Descarbonização da Economia, Energia e Futuroe- book, edição Vanguard Properties, 2023, versões em português e inglês Português: www.vangproperties.com/media/5949/ebook_c_cv_pt.pdf Inglês: www.vangproperties.com/media/5948/ebook_c_cv_en.pdf
  • [2] Sergio Fernandes Tavares, Luís Bragança, Índices de CO2 para materiais de construção em edificações brasileiras, SBE Series, 16, Vol2.
  • [3] Valter Antonio Martins Henriques, Impacte Ambiental de Estruturas de Edifícios. A produção de CO2, Tese de Mestrado, IST, Academia Militar. 2011.
  • [4] Life Cycle Greenhouse Gas Emissions from Solar Photovoltaics, NREL, Novembro 2012.
  • [5] Estratégias corporativas de baixo carbono: sector do vidro, Confederação Nacional da Indústria, Brasília, CNI, 2016.
  • [6] Iasmini Borba da Cunha, Quantificação das emissões na construção de unidades residenciais unifamiliares com diferentes materiais, Tese de mestrado, Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016).
  • [7] Cassia Laire Kozloski, Emissão de CO2 de Materiais de Construção Civil no Brasil: estimativas da etapa processual das edificações, Universidade Federal Santa Maria, Tese de mestrado (2020).
  • [8] Joana Sousa Coutinho, Betões eco eficientes com resíduos, 1.as Jornadas de materiais de construção (2011).
  • [9] Elias Hurmekoski, How can wood construction reduce environmental degradation?, 2017, ISBN 978-952-5980-33-2 (printed).

  1. O CO2 e o CH4 não são os únicos gases causadores do efeito de estufa (GEE) mas dominam de forma esmagadora; uma análise mais fina teria de incluir os demais GEE, mas isso não seria particularmente relevante para o sector da habitação. ↩︎
  2. Por exemplo, em Portugal, hoje, com 60% de renováveis para produção de energia final eléctrica e o resto através, sobretudo, de Gás Natural, em média temos ~100 gCO2 /kWh, no Brasil~40 gCO2/kWh, e noutros países da EU podem atingir-se valores muito mais elevados, até da ordem dos 800 g/kWh, fruto do mix energético na produção de electricidade com mais ou menos combustíveis fósseis. ↩︎

Manuel Collares Pereira
Professor, Investigador, Coordenador, Consultor Científico da Vanguard Properties

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